sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sonhos lúcidos: encarando a própria sombra

Imagine-se em um mundo fantástico, colorido, surreal, no qual você poderia agir livremente e seus atos seriam simplesmente apagados, sem consequências. Você pode pular de um prédio, entrar na cova dos leões, matar friamente um inimigo, fazer sexo selvagem e promíscuo ou andar nu no meio da multidão. Essa é a deliciosa extravagância do sonho lúcido. Ao raiar do dia você acorda, sorri para todo o mundo, age como um profissional competente, é amável com todos e equilibrado nos prazeres. Dos seus atos perversos noturnos, sobrou somente uma estranha sensação, muito sutil, de desejo satisfeito.Saber que está sonhando e soltar os demônios: uma excelente oportunidade de auto-descoberta. "O que eu fiz no meu mundo de liberdade irrestrita?" Encare os fatos e conheça a sua "sombra". Todos aqueles desejos, frustrações, sensações, desvios de conduta que você jogou em algum canto da mente vêm a tona em imagens noturnas.
Tenho sonhos lúcidos com muita frequência, e em alguns me deparo com a irresistível oportunidade de dar vazão a desejos inconfessáveis. Porém, há um aspecto interessante a levar em conta: inclusive nos sonhos lúcidos nos revolvemos com sentimento de culpa e freios morais. Nos meus, uma situação absurda se repetia: quando eu ia "escancarar", fazer o impossível desejado, apareciam pessoas... pessoas... pessoas... Saía gente de todos os lados, não sei de onde surgiam, mas de repente o cenário se abria e eu estava exposta às multidões. Eu me deixava levar pela vergonha, e desistia do meu intento.
Esses sonhos, nos quais nos sentimos expostos (o mesmo sentido de quando sonhamos que estamos nus) nos jogam na face aqueles dilemas morais que nos martirizam e aprisionam. Moral essa que não nos abandona nem quando nos encontramos completamente sozinhos, nem mesmo em nossos pensamentos: temos vergonha até mesmo de pensar ou desejar em silêncio. É o Olho Que Tudo Vê, que nos julga e condena a cada instante. Ele está em todos os lugares e ao mesmo tempo, em lugar nenhum. Paira sobre aqueles que convivem conosco e eternamente acima de nossas cabeças.
Com o tempo, meus sonhos tiveram uma evolução importante: pintava e bordava na frente de toda aquela gente. "Sim, seus imbecis, vocês só existem por pura criação da minha mente e quando eu acordar morrerão um a um. Olhem o que eu faço e como sou malvada!"Isso coincidiu justamente com o período em que decidi parar de me esconder de mim mesma e olhar meu lado sombrio.
Juro que não virei nenhuma assassina, pervertida e amoral, mas reconhecer em si o que há de inaceitável é uma maneira de pararmos de apontar os defeitos alheios e olharmos para dentro de nós mesmos. Continuamos convivendo pacificamente em sociedade e obedecendo os limites impostos pela boa convivência. Porém, você desenvolve aquela fina ironia e o sarcasmo necessários para enfrentar a vida sem levá-la tão a sério. Recebe os atributos do diabo histrião representado no tarô, o demônio do riso e da alegria condenados pela ortodoxia medieval. Aprende dar risada, e ainda assim ser tolerante com seu pior lado
. E talvez estejam justamente ali, em todo o conteúdo que você trancou no baú, suas qualidades mais criativas e o melhor que pode dar de si.

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