terça-feira, 27 de abril de 2010

Deveria ser um sonho revelador...


Anos atrás, eu devia ter uns 14 ou 15 anos, li a respeito de como prepararmos a mente para sonharmos algo profético ou revelador. Segui os procedimentos antes de dormir. O sonho: Pretão, meu gato, caminhava sobre as águas, como Jesus.
Parece piada! Se eu identificasse o Pretão com qualquer figura histórica, seria Calígula ou Rasputin. O gato era um pervertido, briguento, interesseiro. No inverno, num frio cortante, ele voltava da orgia todo arrebentado e se botava a miar na minha janela... e ai se eu não abrisse! Lá ia a Amélia receber carinhosamente o boémio que retornava. Então o bichano se esticava em algum lugar que dificultasse meus movimentos e dormia o sono dos justos.
O Pretão era o bicho mais asqueroso que já existiu. Certo dia apareceu com uma ferida bem acima do focinho. Pensei que ele tivesse três olhos. Uma outra ferida, purulenta, com o horrível nome de "carnegão", localizada abaixo da orelha nunca se curava e causava um inchaço na bochecha que o deixava parecido com um castor com a boca cheia de nozes. Uma doença no pelo que fazia largar pedaços do coro por onde deitava. A barriga ficou completamente pelada durante um certo tempo. Não sei o que ele tinha, mas pelo seu modo de vida, desconfio que era sífilis. Sífilis felina, ou algo parecido. Doença venérea, com certeza. A contabilidade geral do estado do bicho também somava: um rabo quebrado na ponta da coluna, que lhe tirava a sensibilidade (era o maior barato pisar nele) e tinha uma envergadura na forma de um "U" virado para baixo, alguns pedaços das orelhas faltando, uma unha que quebrou, entrou para dentro da pata e infeccionou. Foi a única vez que ele foi ao veterinário: uma intervenção cirúrgica lhe amputou o dedo machucado. Fora as inúmeras feridas, que ele trazia fresquinhas depois de cada noitada. Eu tinha um prazer sádico em fuçar e limpá-las, e ficava horas nessa função. Quando eu botava o bicho no banheiro e fechava a porta, ele começava a entrar em desespero.
A única semelhança do Pretão com Cristo é que ele também ressuscitou. Porém, Cristo ressuscitou uma vez, e o Pretão, duas. Sei que é difícil acreditar. Mas por duas vezes nossa empregada recolheu o animal morto no meio da rua. Na segunda vez, ela disse que inclusive conferiu as orelhas faltando pedaços. Enterrava o falecido no pátio, entre os canteiros. Lamentávamos a morte do nosso querido, mas no meio da tarde ele aparecia: no poste que sustentava o varal de roupas, de onde ele dava um pulo certeiro e subia na sacada passando por entre as grades. Coordenação incrível para um bicho sem rabo. Era a festa.
Foi assim que comecei a desconfiar que o cemitério indígena micmax, onde enterravam os mortos no filme "Cemitério Maldito", ficava nos fundos da minha casa. Lamento que não moro mais lá, pois teria enterrado minha querida Sandina, que morreu envenenada, no mesmo local. A terceira morte do gato foi no consultório veterinário. Causa mortis: bateu a cabeça em um carro que passava. dizem que a veterinária cremava os animais mortos. Isso impossibilitaria a ressurreição. Ou ele anda assombrando por aquelas bandas...

Voltando ao sonho: qual a interpretação possível?

Pensando sobre isso, encontrei uma resposta plausível: o sonho fala do Sagrado inerente à nossa "sombra". São aspectos renegados da personalidade que devem ser reintegrados ao "self", e quando retirados de seu conteúdo sombrio, são importantes aliados no processo de auto-descoberta. O que há de mais monstruoso dentro do indivíduo (ou aquilo que ele considera repulsivo) pode ser a solução para os problemas existenciais e repressões que o atormentam.
Gatos eram animais sagrados no antigo Egito, talvez porque executassem a importante tarefa de eliminar os ratos no celeiros. Há vestigios arqueológicos de gatos muimificados, junto com mumiazinhas de ratos que os alimentariam no além.
Li a respeito de um fato curioso, sobre um romano residente no Egito que foi condenado a morte por ter assassinado um gato. A deusa Bastet era um testemunho da adoração por felinos.
O gato preto, por sua vez, nas tradições medievais foi associado á bruxaria, na onda de transformação de ícones pagãos em seres demoníacos, como os sátiros. A afeição excessiva por animais poderia ser motivo para mandar alguém para a fogueira. Outros animais que entraram na lista negra da Inquisição foram os sapos, corujas e corvos.

A cisão entre o Bem e Mal, Deus e Diabo, o que é maligno e benigno, Céu e Inferno marcou a civilização ocidental. Somente no Judaísmo e Cristianismo é que Deus é inteiramente bom, e o ser humano deve se livrar de todo o instinto pecaminoso. Os deuses pagãos eram por vezes iracundos, vingativos, ardilosos e tinham defeitos humanos. Kali, a deusa negra da morte hindu, o debochado Loki da mitologia nórdica e o Exu das deidades africanas , que não perdoava quem lhe faltasse com o ebó prometido, são exemplos disso. Mas nem por isso deixavam de ser deuses, venerados e sacralizados. Eses povos tinham seus "gatos pretos" incluídos no panteão divino, e aceitavam o lado negro da existência como inextirpável e convivível. Certamente, viviam em paz com a própria sombra, e não a mantinham aprisonada como um leão enfurecido, louco para romper as grades e deixar um rastro de destruição.

Nenhum comentário: