sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sonhos lúcidos: encarando a própria sombra

Imagine-se em um mundo fantástico, colorido, surreal, no qual você poderia agir livremente e seus atos seriam simplesmente apagados, sem consequências. Você pode pular de um prédio, entrar na cova dos leões, matar friamente um inimigo, fazer sexo selvagem e promíscuo ou andar nu no meio da multidão. Essa é a deliciosa extravagância do sonho lúcido. Ao raiar do dia você acorda, sorri para todo o mundo, age como um profissional competente, é amável com todos e equilibrado nos prazeres. Dos seus atos perversos noturnos, sobrou somente uma estranha sensação, muito sutil, de desejo satisfeito.Saber que está sonhando e soltar os demônios: uma excelente oportunidade de auto-descoberta. "O que eu fiz no meu mundo de liberdade irrestrita?" Encare os fatos e conheça a sua "sombra". Todos aqueles desejos, frustrações, sensações, desvios de conduta que você jogou em algum canto da mente vêm a tona em imagens noturnas.
Tenho sonhos lúcidos com muita frequência, e em alguns me deparo com a irresistível oportunidade de dar vazão a desejos inconfessáveis. Porém, há um aspecto interessante a levar em conta: inclusive nos sonhos lúcidos nos revolvemos com sentimento de culpa e freios morais. Nos meus, uma situação absurda se repetia: quando eu ia "escancarar", fazer o impossível desejado, apareciam pessoas... pessoas... pessoas... Saía gente de todos os lados, não sei de onde surgiam, mas de repente o cenário se abria e eu estava exposta às multidões. Eu me deixava levar pela vergonha, e desistia do meu intento.
Esses sonhos, nos quais nos sentimos expostos (o mesmo sentido de quando sonhamos que estamos nus) nos jogam na face aqueles dilemas morais que nos martirizam e aprisionam. Moral essa que não nos abandona nem quando nos encontramos completamente sozinhos, nem mesmo em nossos pensamentos: temos vergonha até mesmo de pensar ou desejar em silêncio. É o Olho Que Tudo Vê, que nos julga e condena a cada instante. Ele está em todos os lugares e ao mesmo tempo, em lugar nenhum. Paira sobre aqueles que convivem conosco e eternamente acima de nossas cabeças.
Com o tempo, meus sonhos tiveram uma evolução importante: pintava e bordava na frente de toda aquela gente. "Sim, seus imbecis, vocês só existem por pura criação da minha mente e quando eu acordar morrerão um a um. Olhem o que eu faço e como sou malvada!"Isso coincidiu justamente com o período em que decidi parar de me esconder de mim mesma e olhar meu lado sombrio.
Juro que não virei nenhuma assassina, pervertida e amoral, mas reconhecer em si o que há de inaceitável é uma maneira de pararmos de apontar os defeitos alheios e olharmos para dentro de nós mesmos. Continuamos convivendo pacificamente em sociedade e obedecendo os limites impostos pela boa convivência. Porém, você desenvolve aquela fina ironia e o sarcasmo necessários para enfrentar a vida sem levá-la tão a sério. Recebe os atributos do diabo histrião representado no tarô, o demônio do riso e da alegria condenados pela ortodoxia medieval. Aprende dar risada, e ainda assim ser tolerante com seu pior lado
. E talvez estejam justamente ali, em todo o conteúdo que você trancou no baú, suas qualidades mais criativas e o melhor que pode dar de si.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Deveria ser um sonho revelador...


Anos atrás, eu devia ter uns 14 ou 15 anos, li a respeito de como prepararmos a mente para sonharmos algo profético ou revelador. Segui os procedimentos antes de dormir. O sonho: Pretão, meu gato, caminhava sobre as águas, como Jesus.
Parece piada! Se eu identificasse o Pretão com qualquer figura histórica, seria Calígula ou Rasputin. O gato era um pervertido, briguento, interesseiro. No inverno, num frio cortante, ele voltava da orgia todo arrebentado e se botava a miar na minha janela... e ai se eu não abrisse! Lá ia a Amélia receber carinhosamente o boémio que retornava. Então o bichano se esticava em algum lugar que dificultasse meus movimentos e dormia o sono dos justos.
O Pretão era o bicho mais asqueroso que já existiu. Certo dia apareceu com uma ferida bem acima do focinho. Pensei que ele tivesse três olhos. Uma outra ferida, purulenta, com o horrível nome de "carnegão", localizada abaixo da orelha nunca se curava e causava um inchaço na bochecha que o deixava parecido com um castor com a boca cheia de nozes. Uma doença no pelo que fazia largar pedaços do coro por onde deitava. A barriga ficou completamente pelada durante um certo tempo. Não sei o que ele tinha, mas pelo seu modo de vida, desconfio que era sífilis. Sífilis felina, ou algo parecido. Doença venérea, com certeza. A contabilidade geral do estado do bicho também somava: um rabo quebrado na ponta da coluna, que lhe tirava a sensibilidade (era o maior barato pisar nele) e tinha uma envergadura na forma de um "U" virado para baixo, alguns pedaços das orelhas faltando, uma unha que quebrou, entrou para dentro da pata e infeccionou. Foi a única vez que ele foi ao veterinário: uma intervenção cirúrgica lhe amputou o dedo machucado. Fora as inúmeras feridas, que ele trazia fresquinhas depois de cada noitada. Eu tinha um prazer sádico em fuçar e limpá-las, e ficava horas nessa função. Quando eu botava o bicho no banheiro e fechava a porta, ele começava a entrar em desespero.
A única semelhança do Pretão com Cristo é que ele também ressuscitou. Porém, Cristo ressuscitou uma vez, e o Pretão, duas. Sei que é difícil acreditar. Mas por duas vezes nossa empregada recolheu o animal morto no meio da rua. Na segunda vez, ela disse que inclusive conferiu as orelhas faltando pedaços. Enterrava o falecido no pátio, entre os canteiros. Lamentávamos a morte do nosso querido, mas no meio da tarde ele aparecia: no poste que sustentava o varal de roupas, de onde ele dava um pulo certeiro e subia na sacada passando por entre as grades. Coordenação incrível para um bicho sem rabo. Era a festa.
Foi assim que comecei a desconfiar que o cemitério indígena micmax, onde enterravam os mortos no filme "Cemitério Maldito", ficava nos fundos da minha casa. Lamento que não moro mais lá, pois teria enterrado minha querida Sandina, que morreu envenenada, no mesmo local. A terceira morte do gato foi no consultório veterinário. Causa mortis: bateu a cabeça em um carro que passava. dizem que a veterinária cremava os animais mortos. Isso impossibilitaria a ressurreição. Ou ele anda assombrando por aquelas bandas...

Voltando ao sonho: qual a interpretação possível?

Pensando sobre isso, encontrei uma resposta plausível: o sonho fala do Sagrado inerente à nossa "sombra". São aspectos renegados da personalidade que devem ser reintegrados ao "self", e quando retirados de seu conteúdo sombrio, são importantes aliados no processo de auto-descoberta. O que há de mais monstruoso dentro do indivíduo (ou aquilo que ele considera repulsivo) pode ser a solução para os problemas existenciais e repressões que o atormentam.
Gatos eram animais sagrados no antigo Egito, talvez porque executassem a importante tarefa de eliminar os ratos no celeiros. Há vestigios arqueológicos de gatos muimificados, junto com mumiazinhas de ratos que os alimentariam no além.
Li a respeito de um fato curioso, sobre um romano residente no Egito que foi condenado a morte por ter assassinado um gato. A deusa Bastet era um testemunho da adoração por felinos.
O gato preto, por sua vez, nas tradições medievais foi associado á bruxaria, na onda de transformação de ícones pagãos em seres demoníacos, como os sátiros. A afeição excessiva por animais poderia ser motivo para mandar alguém para a fogueira. Outros animais que entraram na lista negra da Inquisição foram os sapos, corujas e corvos.

A cisão entre o Bem e Mal, Deus e Diabo, o que é maligno e benigno, Céu e Inferno marcou a civilização ocidental. Somente no Judaísmo e Cristianismo é que Deus é inteiramente bom, e o ser humano deve se livrar de todo o instinto pecaminoso. Os deuses pagãos eram por vezes iracundos, vingativos, ardilosos e tinham defeitos humanos. Kali, a deusa negra da morte hindu, o debochado Loki da mitologia nórdica e o Exu das deidades africanas , que não perdoava quem lhe faltasse com o ebó prometido, são exemplos disso. Mas nem por isso deixavam de ser deuses, venerados e sacralizados. Eses povos tinham seus "gatos pretos" incluídos no panteão divino, e aceitavam o lado negro da existência como inextirpável e convivível. Certamente, viviam em paz com a própria sombra, e não a mantinham aprisonada como um leão enfurecido, louco para romper as grades e deixar um rastro de destruição.

Sonhos: gatos


Minha paixão por gatos é manifesta. Talvez eu me entenda melhor com eles do que com as pessoas. Alguns acusam esses animais de cinismo e infidelidade. Eu diria que eles têm amor próprio. Cães são Amélias.

Faz anos que o mesmo drama se repete nos meus sonhos: tenho que proteger os gatinhos. As vezes os bichinhos estão deformados, são meio mutantes. Outras, tenhos que reunir muitos de uma ninhada em um local seguro para que não se machuquem, tarefa que vai se tornando mais difícil com o desenrolar do sonho. Eles fogem e se metem em problemas: são pisoteados, pegos por cães, caem de lugares altos, etc.

Que agonia é essa de dar proteção a seres tão frágeis? A quem estou tentando proteger? Pensando nisso,de fato tenho a incrível capacidade de me preocupar em excesso com problemas alheios. Ou será simplesmente porque traço inúmeros planos ao mesmo tempo, e eles "me fogem"?

O sentimento nuclear do sonho é de culpa (quando se machucam), desespero por não dar conta da responsabilidade, e a necessidade ter "cem braços" para conseguir agarrar tudo.

O bom é que ultimamente os gatinhos estão mais bonitinhos e se machucam menos. Até consigo salvá-los! Alguma transformação ocorreu em minha psique ao longo de todo esse tempo. Talvez uma das minhas interpretações do sonho esteja correta.

domingo, 25 de abril de 2010

Sonhos: na escola e a maldita matemática


Esse sonhos são recentes. Sou estudante do Ensino Médio. No sonho, tenho consciência de que já me formei na Universidade, mas por algum motivo voltei para o colégio. Tenho colegas, faço amizades, a sensação é renovadora. Têm um porém: em algum momento, terei de fazer uma prova de matemática (disciplina na qual sempre tive problemas). E o pior que tenho uma vaga lembrança de ter gazeado ou simplesmente não ter participado das aulas desta matéria.
Reflexões: Sendo professora, talvez seja bom lembrar o que é ser aluna. Enquanto professores começamos a nos tornar intolerantes e inflexíveis, e acusamos nosso alunos desinteressados de estarem arruinado todas as possibilidades de ter um futuro decente. Eu também já fui uma estudante "vagal", e quando descobri o que realmente queria da vida - nada parecido com o que aprendia na escola - me concentrei nos estudos e encontrei o meu rumo. É sempre bom voltar atrás e lembrar.
Por outro lado, esses sonhos me despertam uma confortante sensação de jovialidade. Em meio as tais "crises de idade" (tenho tantos anos e ainda não tenho isso, não fiz aquilo, etc.), a possibilidade de viajar para aqueles momentos tão cheios de vitalidade que viviamos na escola já vai tornar o seu dia diferente.
E quanto à prova de matemática? Nunca mais tive que me preocupar com geometria e algebra, mas porque voltar a um trauma antigo? Um drama psicológico abandonado antes da resolução? Inseguranças e medo de fracassar que voltam a assombrar? A vida é cíclica, e constantemente voltamos a ser acossados pelos mesmos fantasmas. E dilemas que julgávamos superados pela nossa divina maturidade ressurgem como uma criança birrenta e indignada que nos grita nos ouvidos.
No próximo sonho, quero ver se dou um jeito de não gazear as aulas.

sábado, 24 de abril de 2010

Sonhos: portais do mundo interior

Desde o 14 anos, sou fascinada pelos meus sonhos. Tenho centenas deles escritos em meus cadernos.

Já visitei planetas estranhos, vi o Apocalipse, Deus e o Diabo.

Certas épocas, meus sonhos são vívidos e multidimensionais. Em outras, são banais. Depende muito do estado psicológico, ou de estar atravessando um período de estagnação ou transformação.
De tanto escrever o conteúdo dos sonhos, acabei descobrindo que eles obedecem a certos padrões. Nunca tive o mesmo sonho duas vezes, mas sonho constantemente com os mesmos temas. Sei que há uma realidade psíquica a desvendar por trás de cada um deles. E o mais interessante é que, quando você descobre o que o sonho está querendo indicar, ele o abandona ou vêm totalmente transformado: a situação conflituosa "se resolve".
Alguns temas perseguem pela vida toda. Talvez porque estejam ligados a aspectos muito profundos da personalidade, e que em essência jamais serão modificados.
A medida que os sonhos vão sendo registrados, é mais fácil recordá-los. E parece que se tornam mais significativos. Ando recordando pouco das minhas viagens noturnas ultimamente. Será que o excesso de exigências e as constantes "overdoses de realidade" da vida adulta diminuem a capacidade da mente de produzir sonhos fantásticos?


sexta-feira, 23 de abril de 2010

O caderno do Bem

Tenho um caderno do Bem e vários cadernos do Mal.
No do Bem escrevo reflexões existencialistas e pensamentos otimistas sobre a Alma, o Espírito, o Nada, as Energias Cósmicas.Nos do Mal reclamo de tudo, me lamento por existir (lascia quio pianga la cruda sorte...) e destilo meu veneno sobre as pessoas que passam na minha vida. Pessoas que amo, mas que as vezes me irritam.
Vou colocar aqui algumas frases fofas do caderno do Bem. Não espero ser reconhecida pelo meu exímio talento literário. Isso é auto-ajuda auto-criada.
As farpas do caderno do Mal só serão publicadas depois que eu morrer.

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Não desejar.
Hoje não vou fazer planos.
Nem vou tentar cavar minha própria culpa.
Não vou traçar metas para uma vida menos solitária, mais útil ou mais feliz.
Hoje não vou esperar nada.Nem que venham as benesses do Alto, nem que meu Ser Supremo desperte e se mostre.
Não vou temer o tempo perdido e tentar recuperá-lo no Porvir.
Nem traçar o plano de ação para a tão desejada Felicidade.



(Escrevo frases soltas, mas de forma alguma tenho a pretensão de fazer poesia.)

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Não projetar.
Não desejo mais ver a mim como desejo que outros me vejam.
Abandono as fantasias nas quais, no outro, vejo a mim mesma.
Não converso e não me justifico. Não explico minhas teorias nem me desculpo por existir.
Sou.
De dentro de mim é que parto para o mundo.

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Tudo ocorre conforme pedimos..
Porém o erro está em achar que de nossos desejos não brotará nenhuma aflição.
Todo o desejo traz consigo o entusiasmo e a dor.

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Aqui é inquietude.
Esperamos. Conseguimos.
Angustiados voltamos ao vazio..
Nada é constante. Tudo é criado, e no próprio princípio gerador move e agita-se a morte.
Ansiamos a paz por um segundo que seja. Conservar. Segurar aquilo que nunca esteve ali.
Nesta terra onde tudo morre e se perde no tempo, onde impera a morte soberana, tudo se vai. Somente a morte e a destruição são permanentes.
Há o Espírito. Ele está adormecido. Mas é indestrutível.

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Porque se preocupar tanto com o futuro?
É pelo fato de que alimentamos a ilusão da felicidade plena. De que seguindo os passos certos, trilhando o caminho com disciplina, vencendo consecutivamente todas as barreiras, encontraremos, por fim, a tal plenitude, a vida perfeita.
Esquecemos que atrás de cada véu desnudado há novos fantasmas. Depois de atravessar uma montanha, nem sempre haverá um vale florido. E a cada batalha vencida, o general vêm com mais responsabilidades.
Agora é o momento.
Sejamos o mais feliz que pudermos EXATAMENTE AGORA.

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O olhar do outro


Vivo para mim. E há outros seis bilhões de seres, no mundo, que vivem para si. Cada qual com seus próprios conceitos, moral, preferências, opiniões, medos, angústias.

Uns olham para os outros. Por quanto tempo se detém? Não mais que o necessário para a satisfação de algum desejo ou afecção.

Eu acredito que outros realmente se importam. Compartilho essa ilusão com outros 6 bilhões de pessoas. Ninguém, de fato, sem importa. Tudo o que desejam ver em mim é uma imagem de si mesmas. Tudo o que desejo ver nos outros é uma imagem positiva de mim mesma.

Resultado: somos todos livres!

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Somos exilados de nós mesmos.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Não entendi... me explica?

Fugidio é tudo aquilo que nos parece Eterno...
O Eterno é o que nos foge a todo instante.

(Reflexão depressiva de sala-de-aula)

Reflexão sobre um texto de Sartre



Esse texto eu escrevi durante o meu pós-graduação "A Filosofia e seu Ensino". Eu acho ele fofo...


“O homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza, não é portanto nada mais que o conjunto de seus atos, nada mais do que a sua vida”.

“Que significa o fato de a existência proceder à essência? Significa que o homem primeiramente existe, , se descobre, surge no mundo, e que só depois se define.

O homem, tal como concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa quando a si próprio se fizer. Assim, “não há natureza, assim como não há Deus para conceber.”

(Excertos de “O Existencialismo é um humanismo”. Retirado de ALMEIDA, Fernando José de. “Sartre: è proibido proibir”. São Paulo: FTD, 1988.).

Uma reflexão sobre a importância de Sartre para a atualidade, baseada nos trechos citados, poderia começar pelo sujeito. Aqui o sujeito é esvaziado de uma “essência” que o precede, excluindo qualquer debate teológico ou metafísico. O sujeito é livre e único, porque não faz parte de nenhum grande ente universal, não tem um destino definido ou “missão” em sua trajetória terrestre. Foi jogado no mundo, não optou por existir, mas a partir do momento em que se percebe enquanto sujeito é responsável por seus atos e carrega em si todas as dores ou prazeres da existência.

O sujeito não é algo pronto ou moldado por uma essência que lhe confere a humanidade, mas se constrói à medida que se reconhece como um ser diferente dos outros. Ao mesmo tempo em que parece ser o único a ter percepção de si, julga e avalia os outros seres, e acaba percebendo que esses outros seres também o percebem, julgam e avaliam. O indivíduo não é algo fechado em si mesmo, mas constrói sua identidade em contato com outros seres. O reconhecimento de que sua personalidade não é algo dado, um destino, sina ou uma obra da “natureza” é essencial para que o indivíduo possa ser um participante ativo da reconstrução de si mesmo.

A psicanálise freudiana também reconhecia a importância do outro na formação do indivíduo, porém, esse era agrilhoado por seus traumas, principalmente os sexuais, fantasmas edipianos que lhe atormentariam desde a infância. Sartre, pelo contrário, valorizava a capacidade do sujeito de reconstruir suas memórias e ressignificar sua experiência. O sujeito é aquilo que deseja ser, e com base em um projeto é que dá significado à sua experiência.

Essa postura de assumir a própria existência, a princípio, pode ser amedrontadora, pois tira o homem de seu “chão” que são os conceitos morais já estabelecidos pela religião e pelas instituições oficiais que moldam a conduta do indivíduo: a família, o Estado, a escola. Sem valores ou regras que o apóiem, o homem é obrigado a construir seus próprios valores e delinear seus limites, frente a si e ao outro. Não significa que, negando valores estabelecidos, o sujeito cai no hedonismo e numa falta total de responsabilidade: muito pelo contrário, o homem assim livre acaba arcando com uma responsabilidade muito maior, de construir uma ética a luz de sua própria experiência e consciência, e de estar em constante reformulação, nunca satisfeito ou plenamente justificado por seus atos. Sem um Deus que perdoe suas falhas, o jeito é assumi-las e fazer os possível para saná-las.

Enquanto as instituições realizam um esforço contínuo por estabelecer regras e limites, em criar uma burocracia cada vez mais eficiente que garanta punições eficazes aos desvios da norma, menos os sujeitos se responsabilizam por seus atos. A culpa e a aflição decorrentes de uma não adequação às normas geram, ao contrário do que seria o esperado, a violência e a falta de compromisso com o outro.

Sem noção de que é criador de sua própria existência, que só existe porque assim se reconhece, o sujeito age como uma eterna vítima de circunstancias que lhe são externas, e é fora de si que busca a solução para a sua angústia. Deseja um grande amor, mas se nega a começar por construir esse amor dentro de si mesmo. Busca a riqueza e o conforto material, sem nunca questionar quais são suas reais necessidades e se realmente encontra prazer naquilo que alcança.

Sartre nos faz repensar nossa condição de seres ao mesmo tempo presos a uma sociedade que nos molda, mas também livres para reconstruir a própria existência. Enfrentar o desafio de Sartre, de encarar que não somos nada além de nossa própria consciência de quem somos, de que antes e depois de nossa existência é somente o vazio, é um desafio de perder todas as nossas antigas referências de valores, que nos foram dadas, e construir novos valores e ter que arcar com o fracasso decorrente disso. É se colocar fora da correnteza dos acontecimentos e tomar o curso da própria vida.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Faça seus próprios rituais



Acenda o incenso do jeito correto: "não presta" se ele queimar inteiro. Guarde o tarô dentro de um pano, coloque tais elementos no seu altar, numa noite de lua cheia, numa sexta feira, na hora combinada, recite tais e tais palavras: blah blah blah e o ritual mágico estará realizado. Vire a cama para o norte, o altar para o sul, o sofá e a televisão para oeste e a cozinha para leste (estou inventando). O Universo, os Espíritos Superiores, as forças da natureza estarão trabalhando sob o seu comando.
Sou cética e insensível a toda essa conversa, pregada por algumas seitas "neo-pagãs". Primeiro porque justificam esses rituais em origens remotas - aos celtas, por exemplo - e descrevem práticas que nunca ocorreram. Se ao menos admitissem que inventaram algo completamente novo, seria muito digno de respeito.Porém, como historiadores, são excelentes bruxos. Adaptam os costumes desses povos a um passado fantasiado, que justifica a beleza, complexidade e estética dos seus rituais bonitinhos.
Falam de um medievo mágico, com suas feiticeiras executando, na calada da noite, seus rituais magníficos. Porém, estudos históricos mais recentes mostram uma realidade que não tem nada desse misticismo cativante: curandeiras, parteiras, seguidores das "heresias", membros remanescentes de suas religões originais sendo executados nas fogueiras inquisitorias, pelo simples fato de pertencer ao sexo demoníaco - o feminino -, ou por se desviarem dos rígidos preceitos católicos. Nada de bruxinhas de cabelos e capas longas dançando em volta da fogueira, com suas vassouras cheias de fitas.
As religiões antigas e fundamentais seguem rituais e preceitos rígidos, e de certa forma também os justificam em um passado mítico e literário. Porém, não reivindicam para si o status de historiadores ou cientistas. Esa onda de misticismo "cientificamente comprovado" ou "embasado em fontes hitóricas" é uma tentativa malograda de se adapatar aos novos tempos, e mostrar a esses "cientistas arrogantes, isolados em suas torres de marfim" que em termos de magia, tudo se prova e se comprova.
Prefiro defender a tese de que as proposições que dizem respeito ao ocultismo não são passíveis de comprovação científica. Ou, pelo menos, muitos desses "estudos científicos" não passam de pseudociência. Qual o estudo científico pode comprovar que, numa consulta de tarô na qual a pessoa escolhe cartas viradas, o "inconsciente", "energias" ou "espíritos iluminados" guiaram a pessoa a escolher as cartas certas? Repetir milhões de vezes a experiência? Ciência é muito mais do que repetição! Um estudo científico deve ser "falseável". E quando falamos em inconsciente, energias áuricas, anjos e espíritos iluminados, estamos nos referindo àquelas coisas cuja existência é impossível provar ou negar. Se uma hipótese não é passível de ser desacreditada a partir de um estudo sistemático, então ela não é científica.
Ainda assim, porque cultivo práticas como tarô, rituais, contato com guias espirituais, etc? Simplesmente porque isso faz parte de minha formação cultural, existencial, e mexe com minha sensibilidade e imaginação. Não preciso me tornar atéia só para provar que sou capaz de reger meu próprio destino, ou que sou inteligente. Afinal de contas, posso abandonar uma crença qualquer sempre que ela se tornar defasada. Alguém se preocupa em provar cientificamente que está apaixonado? Porém, existe experiência mais transcedental do que a paixão, na qual o outro se torna Deus? A maioria dos fatores que formam nossa personalidade e dão sentido à existência são ilógicos e contraditórios: seguimos simplesmente pela tradição e força do hábito. Afirmar que o ateísmo ou agnosticismo é única forma de reger a própria vida sem nenhuma influência de fatores irracionais é uma piada.
Religião e esoterismo não precisam se adequar às regras da Ciência para provar sua legitimidade. Você pode simplesmente podar o fanatismo e a intolerância, além de manter um senso crítico profundo diante de suas crenças, livrando-se daquelas que são um entrave ao seu desenvolvimento pessoal. É essa postura flexível que defendo: não imagine-se na paranóia de ser perseguido por um Deus iracundo, prestes a te jogar nas chamas do inferno caso suas crenças não sejam atreladas à grande Verdade. Use a religiosidade com um aliado ao crescimento pessoal, não como uma fuga ou um "freio" ou desculpa aos seus defeitos.
Portanto, voltando ao título: crie seus próprios rituais. Não caia na balela de acreditar que isso ou aquilo está correto porque "está provado". Descubra o que você precisa para se sentir mais conectado à pensamentos elevados e ao seu "self". Velas, cartas, imagens de anjos, ou simplesmente uma bela paisagem: consulte seu íntimo e faça aquilo que lhe aprouver. Pode ter certeza que nenhuma energia maligna vai cruzar o seu caminho e minar sua paz de espírito.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Tarô: uma paixão inconfessa


Meu trabalho do curso de pós graduação em Filosofia e Ensino teve como tema a Ciência na visão de Karl Popper, e o problema de que qualquer excêntrico, principalmente após a Segunda Guerra (fase de decepção com a Ciência e seus fins malignos), alardeia que o seu inestimável conhecimento esotérico tem fundamento científico. Popper, através de proposições lógicas, acaba com esses argumentos, demonstrando suas falácias. A proposta do meu trabalho era possibilidade de se ensinar os mecanismos lógicos do pensamento científico no Ensino Médio, para que os cidadãos incautos parem de ser enganados pelos xamãs hi-tech.
Bom, desconfio que sou meio esquizofrênica. Porque mesmo defendendo esse cético cientista, há um "outro eu" meio obscuro que ama as coisas inexplicáveis do além. E o tarô é uma de minhas paixões mais intensas.
Comprei recentemente o baralho de Hider Waite, cujas ilustrações ajudam bastante na leitura dos arcanos menores. Estou botando a preguiça de lado e aprendendo a ler com as 78 cartas, ao invés das 22 que constituem os arcanos menores. A pergunta que qualquer um faria é: isso "funciona"?
Realmente, não sei dizer. Há uma margem considerável de acertos, previsões que "pulam" diante dos olhos de quem lê as cartas,aspectos obscuros da personalidade do consulente que se revelam. Alguns jogos são muito claros e lógicos enquanto outros são confusos e inconclusos (pessoas decididas e perguntas coerentes=jogo coerente; pessoas nervosas e perguntas confusa = jogo confuso). E quando "dá certo",no que acreditar?
1) É coincidência: não discordo da teoria do "bolo de frutas" - ao fazer um bolo de frutas, elas não ficam separadinhas, mas se agrupam. Assim são os eventos da vida, podem repetir-se, o fato de dois eventos parecidos ocorrerem juntos é mera obra do acaso.
2)É psicologia: você é perspicaz o suficiente para prever no que vai dar a atitude do consulente perante o problema colocado. A pessoa "entrega o jogo" no momento em que formula a pergunta. Interpretar linguagem corporal também vale.
Ou então, seria realmente o trabalho das energias que são trocadas no ato da consulta, conectando-se com o inconsciente do consulente e prevendo os eventos pela sincronicidade.Para mim essa é a teoria esotérica mais aceitável.
De qualquer modo, aceito a possibilidade de me dedicar a uma arte mágica nada científica, mas divertida, e um belo exercício de imaginação. Formular previsões e conselhos a partir de cartões desenhados é algo fascinante. Tão artístico e criativo que até dispensa a necessidade de ser "verdadeiro".