quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Religiosidade para quê?

Em primeiro lugar, estou tranquila: não vou para o Inferno, nem para o Umbral, nem ser atingida por um raio pelo fato de fazer essa pergunta.
Muitos ateus e agnósticos pensam que toda a pessoa religiosa tem esse medo. Mas não é o meu caso. Não sou atéia, mas me sinto a vontade de brigar com a religião. De duvidar. De ficar como o pé atrás.
A lógica de alguns segmentos religiosos é muito simples: você deve crer, porque está na Bíblia. Se você não crê, ou tem dúvidas, receios, algum desconforto com o dogma, é porque Satanás está enfiando coisas na sua cabeça. Alguns versículos parecem obscuros, contraditórios? Será que a tradução é realmente confiável? Satanás, Satanás. No mundo de Deus tudo tem uma explicação. Há um tipo de dúvida que é permitido: aquela que você esclarece imediatamente com um superior, um douto conhecedor de todas as coisas da Bíblia. Porém, não busque contradições na resposta que ele lhe der. Cuidado com o Inimigo!
Pareço estar me referindo somente à alguns grupos evangélicos, mas vou atirar pedras no meu próprio telhado: o Espiritismo (uma das minhas religiões). Foi em uma palestra no Centro Espírita que ouvi dizer que a dúvida era a grande inimiga do progresso espiritual. Sem contar o número de vezes em que a obra de Kardec era citada como se fosse a Bíblia. Escrita sob a forma de perguntas e respostas, são obras de cunho bastante didático. Não estou aqui tirando o mérito do autor, ele mesmo, sabiamente, afirmou: "os espíritos são homens de seu tempo". Como bom pesquisador, sabia que a Ciência produz verdades provísórias, e não perenes. Sabia que sua doutrina teria que evoluir, ser confrontada com novos conhecimentos. Porém, muitos kardecistas resistem em aceitar que o pensamento mudou, que qualquer obra é contingente ao período histórico em que foi produzida, e que não é mais viável, nos dias de hoje, falar que os espíritos pouco evoluídos nascem entre os bosquímanos na África, e almas iluminadas reencarnam na Europa. Isso era correto afirmar no espírito Imperialista do século XIX, quando os franceses dominavam metade do continente africano. Mas nos dias de hoje soa como... racista!
Quem nega o poder salutar da dúvida, nega o próprio curso da história. Sócrates nos mostrou que o filósofo é um eterno ignorante, sempre buscando a verdade, mas nunca se apropriando dela. E Voltaire, o filósofo Iluminista, demonstrou de que modo a religião de sua época, com suas explicações tão absurdas acerca de qualquer coisa, cegavam no indivíduo o uso da razão. E deixe-se claro que o problema dele não era com a religião em si, mas sim com a maneira como a Igreja fomentava a intolerância e o fanatismo.
A liberdade do exercício da dúvida na religiosidade tem um preço: não há explicações fáceis nem soluções mágicas para aliviar os sofrimentos e angústias dessa vida. Porém, conceitos muito rígidos, quando confrontados por alguma realidade brutal, desmoronam completamente. E o sujeito mergulha no abismo. Porém, quando as suas verdades são flexíveis e provisórias, elas podem ser readaptadas, remodeladas, e você sempre pode rejuntar os cacos de convicções partidas para criar uma nova paisagem. É assim na biologia: somente espécies com o poder de desenvolver mecanismos de adaptação sobrevivem. E os neardenthais da fé vão sendo eliminados no curso da história.