domingo, 30 de dezembro de 2012

Felicidade... lá no topo da montanha

A melhor definição de felicidade que encontrei até hoje foi a do escritor norte americano  Kurt Vonnegut: "Se isso não é bom, então o que é"? Mencionava o tio, que sempre dizia que em momentos felizes, devemos lembrar o quanto nos deixam satisfeitos. Essa reflexão ele apresenta em "Timequake".
Cresci acreditando que a felicidade um dia brilharia em minha vida, quando eu conquistasse aquelas coisas que todos diziam que devemos conquistar, ou até mesmo aquelas que são uma pura obsessão pessoal - e que não fazem sentido para mais ninguém.
Em um sonho, encontrei a resposta: como encontrar a felicidade? Eu escalava uma montanha, e sabia que quando chegasse  ao topo, encontraria um castelo onde morava a Felicidade. Sim, com letra maiúscula, de algum modo eu sabia que era assim que se escrevia. Como aqueles conceitos platônicos: o Bom, o Belo e o Justo. Eu já estava quase no topo, minhas mão só precisavam se apoiar para atingir, em um impulso, o cume. Porém, como acontece nos sonhos, eu inexplicavelmente não conseguia - meu corpo parecia pesado, ou alguma força me puxava para baixo. Tudo foi escurecendo, se desvanecendo, até eu acordar. Fiquei muito tempo meditando sobre esse sonho: e se eu tivesse chegado ao topo, se revelaria algum segredo de valor inestimável, trazendo respostas a todas as minhas angustias? Eu encontraria um conselho, um caminho a seguir, que mudaria minha vida?
Hoje voltei a pensar no sonho. Acho que encontrei a resposta. A tal "Felicidade" que buscamos encontra-se sempre um pouco mais acima. Você nunca chega ao topo da montanha: na verdade, esse topo é uma ilusão que você mesmo criou, acreditando que seguindo um determinado projeto de vida, em algum ponto se atingiria o "grand finale", como recompensa pelo seu esforço: um lugar de conforto, estabilidade, o fim das dúvidas, angústias e frustrações de todo o dia.  É como li em um livro de psicanálise jungiana (e me permito não lembrar o título: Paulo Coelho sempre mencionou coisas que lia sem citar a obra e foi premiado pela ABL.). Um executivo de sucesso, na meia idade, descreve a um jovem empreendedor o que foi sua vida: galgou todos os degraus da escada que o levaram ao topo daquilo que almejava. E quando finalmente chegou, viu que tinha apoiado a escada no lugar errado.
No Ensino Médio, você acredita que um diploma universitário é a suprema realização de sua vida. Depois de formado, inveja os mestres e doutores. Se vier a ser um deles, sempre haverá aquele seu colega que, segundo a sua concepção, recebeu os louros que deveriam ser seus. E assim será com a sua profissão, o seu casamento, o sucesso dos seus filhos. Ficará eternamente correndo atrás daquele lugar que acredita ter sido reservado a você no pódio dos vencedores.
Não penso que o problema seja o fato de querermos ser melhores em tudo o que fazemos. Não somos monges budistas que vivem na serenidade da ausência de qualquer forma de desejo. Devemos ir adiante, expandir horizontes. O problema é que estamos intoxicados com tanta propaganda, tantas boas intenções de gurus de auto-ajuda, tantas imagens de gente bonita e sorridente, famílias perfeitas, moças de curvas milimetricamente simétricas, tecnologia de ponta para resolver todos os problemas do cotidiano e nos entreter, design arrojado, tudo para nos mostrar os vermes que somos, e como a felicidade dos outros é sempre maior que a nossa. Tem sempre alguém para nos dizer que devemos ser autênticos e nos valorizar, desde que isso signifique comprar o produto que estão vendendo.
Desaprendemos a ser felizes, assim como não sabemos mais como ser infelizes. Vivemos em estado de torpor e letargia, comprando produtos, ideias e sonhos que nos trazem alguma satisfação, mas ao mesmo tempo um forte sentimento insuficiência. Sequer podemos nos entregar a nossa angustia, porque isso vai contra a lógica do "continue adquirindo, uma hora você encontra o produto certo."
Se podemos ser felizes? Acredito que só há uma maneira: quando abandornarmos nossa expectativa de felicidade enquanto recompensa futura e pudermos viver no presente,  e por alguns minutos apenas, repertirmos para nós mesmos: "se isso não é bom, então o que é?"
Cheguei a essa conclusão hoje, em um dos meus dias negros, em que eu catalogava frustrações, culpas, ruminava decisões ruins, incapacidades, projetos inacabados e me comparava com pessoas bem sucedidas - sim, a felicidade do outro é sempre melhor do que a sua, pode acreditar. Porém, ao brincar com meu filho na piscina do clube, alguma coisa estranha - um insight - mudou meu humor: senti que se não aproveitasse aquele momento para ser feliz, nada mais haveria de se esperar de felicidade nessa vida. Outras crianças se aproxivam, pediam os brinquedos dele emprestados, outros pais e mães cuidavam dos pequenos.  E nesse momento, brinquei como há muito tempo não me permitia.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sonhos: a casa

Na minha casa tem uma andar de baixo que não foi ocupado.
Lembra a casa de uma tia minha, rica, com várias peças decorativas, que quase nunca eram utilizadas.
Nessa parte da casa tem diversos quartos, uns mais interessantes que os outros. Quero me mudar para um deles. Porém, há duas situações que me impedem: uma, os meus pais dizem que os móveis e objetos do quarto pertencem a uma família que se mudou, e que virá buscá-los (porém, a situação já se arrasta por anos) e outra, há "forças ocultas" agindo nos quartos, e eu tenho medo de dormir lá.
Com o tempo o sonho foi mudando. A casa ficou mais simples, e eu fui conseguindo ocupar as peças que desejava. Em um dos sonhos, eu me dei conta que o que me assustava um pouco era somente o fato de os móveis serem antigos.
O último sonho, essa noite, foi interessante. Era uma outra casa. Muitos quartos, eu os explorava. Em certos pontos, era um chalé. Escolhi um quarto que achei maior que os outros. Quando abri a porta, alguma coisa, parecendo uma bandeja com rodinhas e uma decoração brega de celofane veio em minha direção. Empurrei de volta, e o negócio veio de novo. A seguir um manequim com uma boca sem dentes virou a cabeça para mim. Aquilo tudo parecia sobrenatural, mas eu falei, ou pensei: "isso é o melhor que vocês conseguem fazer?" Entendi que era uma espécie de demonstração vulgar de paranormalidade, que não seria o suficiente para me impedir de ocupar o recinto.
Tenho me perguntado muito sobre o sentido desse sonho. Afinal, que espaços são esses que tento ocupar, mas sou impedida por meus pais ou algum medo sobrenatural?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Religiosidade para quê?

Em primeiro lugar, estou tranquila: não vou para o Inferno, nem para o Umbral, nem ser atingida por um raio pelo fato de fazer essa pergunta.
Muitos ateus e agnósticos pensam que toda a pessoa religiosa tem esse medo. Mas não é o meu caso. Não sou atéia, mas me sinto a vontade de brigar com a religião. De duvidar. De ficar como o pé atrás.
A lógica de alguns segmentos religiosos é muito simples: você deve crer, porque está na Bíblia. Se você não crê, ou tem dúvidas, receios, algum desconforto com o dogma, é porque Satanás está enfiando coisas na sua cabeça. Alguns versículos parecem obscuros, contraditórios? Será que a tradução é realmente confiável? Satanás, Satanás. No mundo de Deus tudo tem uma explicação. Há um tipo de dúvida que é permitido: aquela que você esclarece imediatamente com um superior, um douto conhecedor de todas as coisas da Bíblia. Porém, não busque contradições na resposta que ele lhe der. Cuidado com o Inimigo!
Pareço estar me referindo somente à alguns grupos evangélicos, mas vou atirar pedras no meu próprio telhado: o Espiritismo (uma das minhas religiões). Foi em uma palestra no Centro Espírita que ouvi dizer que a dúvida era a grande inimiga do progresso espiritual. Sem contar o número de vezes em que a obra de Kardec era citada como se fosse a Bíblia. Escrita sob a forma de perguntas e respostas, são obras de cunho bastante didático. Não estou aqui tirando o mérito do autor, ele mesmo, sabiamente, afirmou: "os espíritos são homens de seu tempo". Como bom pesquisador, sabia que a Ciência produz verdades provísórias, e não perenes. Sabia que sua doutrina teria que evoluir, ser confrontada com novos conhecimentos. Porém, muitos kardecistas resistem em aceitar que o pensamento mudou, que qualquer obra é contingente ao período histórico em que foi produzida, e que não é mais viável, nos dias de hoje, falar que os espíritos pouco evoluídos nascem entre os bosquímanos na África, e almas iluminadas reencarnam na Europa. Isso era correto afirmar no espírito Imperialista do século XIX, quando os franceses dominavam metade do continente africano. Mas nos dias de hoje soa como... racista!
Quem nega o poder salutar da dúvida, nega o próprio curso da história. Sócrates nos mostrou que o filósofo é um eterno ignorante, sempre buscando a verdade, mas nunca se apropriando dela. E Voltaire, o filósofo Iluminista, demonstrou de que modo a religião de sua época, com suas explicações tão absurdas acerca de qualquer coisa, cegavam no indivíduo o uso da razão. E deixe-se claro que o problema dele não era com a religião em si, mas sim com a maneira como a Igreja fomentava a intolerância e o fanatismo.
A liberdade do exercício da dúvida na religiosidade tem um preço: não há explicações fáceis nem soluções mágicas para aliviar os sofrimentos e angústias dessa vida. Porém, conceitos muito rígidos, quando confrontados por alguma realidade brutal, desmoronam completamente. E o sujeito mergulha no abismo. Porém, quando as suas verdades são flexíveis e provisórias, elas podem ser readaptadas, remodeladas, e você sempre pode rejuntar os cacos de convicções partidas para criar uma nova paisagem. É assim na biologia: somente espécies com o poder de desenvolver mecanismos de adaptação sobrevivem. E os neardenthais da fé vão sendo eliminados no curso da história.

sábado, 8 de maio de 2010

Só as magras vão para o céu

Olhe para você...
Sua porca, relaxada! Essas
celulites? Estrias? Quadris? Porque diabos você nunca resolveu esse problema de quadris proeminentes? Quantos anos de academia... aqueles cremes - o maldito gel redutor... reduzidas foram o número de vezes que você o passou na pele... com movimentos circulares, lembra?Por que você não consegue, simplesmente, colocar em sua mente - "vou parar de comer" - e agir de acordo?
Olhe a Débora
Secco. A Juliana Paes. Elas não são porcas relaxadas. Elas tem FORÇA DE VONTADE. Débora Secco secou 6 kilos no último mês. E olhe que ela nem tinha de onde tirar. Mas pela sua PERSISTÊNCIA, conseguiu tirar leite de pedra... ou seria "gordura de tábua"?
Existe o mundo das mulheres perfeitas, que tem força de vontade. Que se alimentam
corretamente. Você as vê nas revistas de dieta, felizes diante de um prato de salada. Você fica com esse sorriso quando vê uma bomba de chocolate. Sua PORCA MISERÁVEL! Você não tem sequer um senso estético apurado. Olhe a harmonia das cores do morango vermelhinho sendo mordido com avidez pela garota de lábios translúcidos. A beleza de uma salada verdinha com rodelinhas de tomate cereja num prato de 60 calorias.

Você vai na academia e se sente
entediada na esteira. 20 minutos parecem a eternidade no Limbo. Daí arruma alguma desculpa estapafurdia para descer as escadas e sentar no sofazinho lá em baixo. Olha as revistas Boa Forma sobre a mesinha de centro. A Letícia Sabatella tem aquele corpinho perfeito, aquelas curvas magníficas (nadinha fotoshopadas) porque ELA CORRE UMA HORA E MEIA POR DIA NA ESTEIRA. E olhe só: nada de sofazinho! Se recolha à insignificância da sua preguiça e volte para a maldita caminhada. Caminhada? Vá correr, sua vadia! Bote o suor pra fora. Faz bem pra alma. Você não percebeu como na revista as garotas de curvas perfeitas estão sempre felizes? É porque com a gordura, elas queimaram todos os seus problemas e inseguranças. Compreendeste?

Anote o dever de casa: à noite, quando for dormir, deite a cabeça no travesseiro e faça uma auto-análise profunda. Por que você é tão fraca e medíocre? Então repita comigo, uma fórmula infalível para atingir metas pelo Pensamento Positivo: Juliana
Paes, Juliana Paes, Juliana Paes... imagine seu espírito se deslocando para fora do seu corpo, leve, muito leve... Pelo cordão prateado (que mantém seu perispírito ligado ao corpo), imagine toda a sua gordura sendo sugada e eliminada através de um buraco bem no topo de sua cabeça. No final de sua viagem, seu corpo entra no de Juliana Paes, numa magnífica junção de almas bem-aventuradas. Você vai acordar na manhã seguinte achando que o prato de salada é um quadro do Renoir, e que a bomba de chocolate é o quadro da dor sem moldura. E sentindo uma vontade enorme de correr, correr, pelas ruas, pelos bosques, pelas praças... sentindo a gordura se dissipar em ondas de energia positiva.

Mas se não acontecer desse modo, é porque você não pensou com a fé e a convicção necessárias. Tente no dia seguinte, com mais fervor: Juliana
Paes, Juliana Paes, Juliana Paes...

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O artigo acima será publicado na revista Boa Forma num futuro próximo. Chega de tratar as gordas com
condenscendência: temos que adotar um tom mais direto e agressivo, porque está próximo o Fim dos Tempos.

Quando conseguirmos
ressuscitar a supremacia da raça ariana, iremos juntamente criar uma linhagem de fêmeas MAGRAS e com belos cabelos escorridos. Eliminaremos o Mal sobre a Terra. A gordura é coisa do Demo. Olhem bem como o Tarô de Marselha, a carta denúmero 15 dos arcanos maiores, nos revelou a Primeira Grande Verdade:
Reparem nos
quadris proeminentes, que o danado tentou esconder sob uma apertadíssima calça Rala Bela azul, com uma horrorsa barra cor-de-rosa, tentando camuflar, sem sucesso, sua barriga indecente. E como ele aprisiona aqueles dois seres roliços. É ele quem tenta você a devorar pizzas, bolos, costelinha com gordura, coca-cola três litros versão "montanha de açúcar" e Cornetto.
Por outro lado, preste atenção à Segunda Grande Revelação: a
languidez da bendita entre todas as mulheres, a Mãe de Deus, a Virgem Maria:É pena que, por uma questão de discrição, própria a uma virgem, ela não nos mostre suas abençoadas curvas.

Lembre-se disso, garota:
DEUS CRIOU VOCÊ MAGRA! SUA MENTE PECADORA É QUE A LEVA À OBESIDADE.

Você já viu avestruzes e
emas voando? A natureza é sábia: como castigo ao tamanho dessas aves, tirou-lhes o dom de atingirem os ares. A Terra é um simples esboço das moradas celestiais. Somente criaturas esguias atingirão os Céus com suas asas de penas levíssimas.

Portanto ARREPENDA-SE! Ou vá para o Inferno, onde há choro e balançar de banhas.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sonhos lúcidos: encarando a própria sombra

Imagine-se em um mundo fantástico, colorido, surreal, no qual você poderia agir livremente e seus atos seriam simplesmente apagados, sem consequências. Você pode pular de um prédio, entrar na cova dos leões, matar friamente um inimigo, fazer sexo selvagem e promíscuo ou andar nu no meio da multidão. Essa é a deliciosa extravagância do sonho lúcido. Ao raiar do dia você acorda, sorri para todo o mundo, age como um profissional competente, é amável com todos e equilibrado nos prazeres. Dos seus atos perversos noturnos, sobrou somente uma estranha sensação, muito sutil, de desejo satisfeito.Saber que está sonhando e soltar os demônios: uma excelente oportunidade de auto-descoberta. "O que eu fiz no meu mundo de liberdade irrestrita?" Encare os fatos e conheça a sua "sombra". Todos aqueles desejos, frustrações, sensações, desvios de conduta que você jogou em algum canto da mente vêm a tona em imagens noturnas.
Tenho sonhos lúcidos com muita frequência, e em alguns me deparo com a irresistível oportunidade de dar vazão a desejos inconfessáveis. Porém, há um aspecto interessante a levar em conta: inclusive nos sonhos lúcidos nos revolvemos com sentimento de culpa e freios morais. Nos meus, uma situação absurda se repetia: quando eu ia "escancarar", fazer o impossível desejado, apareciam pessoas... pessoas... pessoas... Saía gente de todos os lados, não sei de onde surgiam, mas de repente o cenário se abria e eu estava exposta às multidões. Eu me deixava levar pela vergonha, e desistia do meu intento.
Esses sonhos, nos quais nos sentimos expostos (o mesmo sentido de quando sonhamos que estamos nus) nos jogam na face aqueles dilemas morais que nos martirizam e aprisionam. Moral essa que não nos abandona nem quando nos encontramos completamente sozinhos, nem mesmo em nossos pensamentos: temos vergonha até mesmo de pensar ou desejar em silêncio. É o Olho Que Tudo Vê, que nos julga e condena a cada instante. Ele está em todos os lugares e ao mesmo tempo, em lugar nenhum. Paira sobre aqueles que convivem conosco e eternamente acima de nossas cabeças.
Com o tempo, meus sonhos tiveram uma evolução importante: pintava e bordava na frente de toda aquela gente. "Sim, seus imbecis, vocês só existem por pura criação da minha mente e quando eu acordar morrerão um a um. Olhem o que eu faço e como sou malvada!"Isso coincidiu justamente com o período em que decidi parar de me esconder de mim mesma e olhar meu lado sombrio.
Juro que não virei nenhuma assassina, pervertida e amoral, mas reconhecer em si o que há de inaceitável é uma maneira de pararmos de apontar os defeitos alheios e olharmos para dentro de nós mesmos. Continuamos convivendo pacificamente em sociedade e obedecendo os limites impostos pela boa convivência. Porém, você desenvolve aquela fina ironia e o sarcasmo necessários para enfrentar a vida sem levá-la tão a sério. Recebe os atributos do diabo histrião representado no tarô, o demônio do riso e da alegria condenados pela ortodoxia medieval. Aprende dar risada, e ainda assim ser tolerante com seu pior lado
. E talvez estejam justamente ali, em todo o conteúdo que você trancou no baú, suas qualidades mais criativas e o melhor que pode dar de si.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Deveria ser um sonho revelador...


Anos atrás, eu devia ter uns 14 ou 15 anos, li a respeito de como prepararmos a mente para sonharmos algo profético ou revelador. Segui os procedimentos antes de dormir. O sonho: Pretão, meu gato, caminhava sobre as águas, como Jesus.
Parece piada! Se eu identificasse o Pretão com qualquer figura histórica, seria Calígula ou Rasputin. O gato era um pervertido, briguento, interesseiro. No inverno, num frio cortante, ele voltava da orgia todo arrebentado e se botava a miar na minha janela... e ai se eu não abrisse! Lá ia a Amélia receber carinhosamente o boémio que retornava. Então o bichano se esticava em algum lugar que dificultasse meus movimentos e dormia o sono dos justos.
O Pretão era o bicho mais asqueroso que já existiu. Certo dia apareceu com uma ferida bem acima do focinho. Pensei que ele tivesse três olhos. Uma outra ferida, purulenta, com o horrível nome de "carnegão", localizada abaixo da orelha nunca se curava e causava um inchaço na bochecha que o deixava parecido com um castor com a boca cheia de nozes. Uma doença no pelo que fazia largar pedaços do coro por onde deitava. A barriga ficou completamente pelada durante um certo tempo. Não sei o que ele tinha, mas pelo seu modo de vida, desconfio que era sífilis. Sífilis felina, ou algo parecido. Doença venérea, com certeza. A contabilidade geral do estado do bicho também somava: um rabo quebrado na ponta da coluna, que lhe tirava a sensibilidade (era o maior barato pisar nele) e tinha uma envergadura na forma de um "U" virado para baixo, alguns pedaços das orelhas faltando, uma unha que quebrou, entrou para dentro da pata e infeccionou. Foi a única vez que ele foi ao veterinário: uma intervenção cirúrgica lhe amputou o dedo machucado. Fora as inúmeras feridas, que ele trazia fresquinhas depois de cada noitada. Eu tinha um prazer sádico em fuçar e limpá-las, e ficava horas nessa função. Quando eu botava o bicho no banheiro e fechava a porta, ele começava a entrar em desespero.
A única semelhança do Pretão com Cristo é que ele também ressuscitou. Porém, Cristo ressuscitou uma vez, e o Pretão, duas. Sei que é difícil acreditar. Mas por duas vezes nossa empregada recolheu o animal morto no meio da rua. Na segunda vez, ela disse que inclusive conferiu as orelhas faltando pedaços. Enterrava o falecido no pátio, entre os canteiros. Lamentávamos a morte do nosso querido, mas no meio da tarde ele aparecia: no poste que sustentava o varal de roupas, de onde ele dava um pulo certeiro e subia na sacada passando por entre as grades. Coordenação incrível para um bicho sem rabo. Era a festa.
Foi assim que comecei a desconfiar que o cemitério indígena micmax, onde enterravam os mortos no filme "Cemitério Maldito", ficava nos fundos da minha casa. Lamento que não moro mais lá, pois teria enterrado minha querida Sandina, que morreu envenenada, no mesmo local. A terceira morte do gato foi no consultório veterinário. Causa mortis: bateu a cabeça em um carro que passava. dizem que a veterinária cremava os animais mortos. Isso impossibilitaria a ressurreição. Ou ele anda assombrando por aquelas bandas...

Voltando ao sonho: qual a interpretação possível?

Pensando sobre isso, encontrei uma resposta plausível: o sonho fala do Sagrado inerente à nossa "sombra". São aspectos renegados da personalidade que devem ser reintegrados ao "self", e quando retirados de seu conteúdo sombrio, são importantes aliados no processo de auto-descoberta. O que há de mais monstruoso dentro do indivíduo (ou aquilo que ele considera repulsivo) pode ser a solução para os problemas existenciais e repressões que o atormentam.
Gatos eram animais sagrados no antigo Egito, talvez porque executassem a importante tarefa de eliminar os ratos no celeiros. Há vestigios arqueológicos de gatos muimificados, junto com mumiazinhas de ratos que os alimentariam no além.
Li a respeito de um fato curioso, sobre um romano residente no Egito que foi condenado a morte por ter assassinado um gato. A deusa Bastet era um testemunho da adoração por felinos.
O gato preto, por sua vez, nas tradições medievais foi associado á bruxaria, na onda de transformação de ícones pagãos em seres demoníacos, como os sátiros. A afeição excessiva por animais poderia ser motivo para mandar alguém para a fogueira. Outros animais que entraram na lista negra da Inquisição foram os sapos, corujas e corvos.

A cisão entre o Bem e Mal, Deus e Diabo, o que é maligno e benigno, Céu e Inferno marcou a civilização ocidental. Somente no Judaísmo e Cristianismo é que Deus é inteiramente bom, e o ser humano deve se livrar de todo o instinto pecaminoso. Os deuses pagãos eram por vezes iracundos, vingativos, ardilosos e tinham defeitos humanos. Kali, a deusa negra da morte hindu, o debochado Loki da mitologia nórdica e o Exu das deidades africanas , que não perdoava quem lhe faltasse com o ebó prometido, são exemplos disso. Mas nem por isso deixavam de ser deuses, venerados e sacralizados. Eses povos tinham seus "gatos pretos" incluídos no panteão divino, e aceitavam o lado negro da existência como inextirpável e convivível. Certamente, viviam em paz com a própria sombra, e não a mantinham aprisonada como um leão enfurecido, louco para romper as grades e deixar um rastro de destruição.

Sonhos: gatos


Minha paixão por gatos é manifesta. Talvez eu me entenda melhor com eles do que com as pessoas. Alguns acusam esses animais de cinismo e infidelidade. Eu diria que eles têm amor próprio. Cães são Amélias.

Faz anos que o mesmo drama se repete nos meus sonhos: tenho que proteger os gatinhos. As vezes os bichinhos estão deformados, são meio mutantes. Outras, tenhos que reunir muitos de uma ninhada em um local seguro para que não se machuquem, tarefa que vai se tornando mais difícil com o desenrolar do sonho. Eles fogem e se metem em problemas: são pisoteados, pegos por cães, caem de lugares altos, etc.

Que agonia é essa de dar proteção a seres tão frágeis? A quem estou tentando proteger? Pensando nisso,de fato tenho a incrível capacidade de me preocupar em excesso com problemas alheios. Ou será simplesmente porque traço inúmeros planos ao mesmo tempo, e eles "me fogem"?

O sentimento nuclear do sonho é de culpa (quando se machucam), desespero por não dar conta da responsabilidade, e a necessidade ter "cem braços" para conseguir agarrar tudo.

O bom é que ultimamente os gatinhos estão mais bonitinhos e se machucam menos. Até consigo salvá-los! Alguma transformação ocorreu em minha psique ao longo de todo esse tempo. Talvez uma das minhas interpretações do sonho esteja correta.